Deitado na cama

 

 

G. K. Chesterton

Tradução de Octavio Marcondes

Adaptado por Artur Eduardo

Retirado do livro ‘Os cem melhores contos de humor da Literatura Universal’.

Título original em inglês ‘On Lying in Bed’.

 Ficar deitado na cama seria, tudo considerado, uma perfeita e suprema experiência se ao menos tivéssemos um lápis de cor longo o bastante para desenhar no teto. Mas não é normal encontrarmos um aparato como este, a mão, entre os utensílios domésticos. Acho que a coisa poderia ser resolvida com algumas latas de tinta e uma vassoura; só que, se alguém trabalhasse assim, com largas varreduras, como os mestres, espalhando as cores em grandes movimentos, a tinta respingaria de volta no seu rosto como estranha chuva encantada, o que poderia ser uma desvantagem. Receio que tenhamos que nos restringir ao preto e branco neste tipo de composição artística. Para isso um teto branco seria de extrema utilidade; na verdade não posso imaginar nenhuma outra forma de utilizar um teto branco.

 

Não fosse a fantástica experiência de ficar deitado na cama eu jamais teria feito tal descoberta. Ha anos que eu busco nas casas modernas um espaço onde desenhar. Papel é pequeno demais para um verdadeiro desenho alegórico. Como diz Cyrano de Bergerac: “Il me faut des geants” (em francês no original: “Necessito de gigantes”), mas sempre me desapontei, procurando por grandes espaços em branco, nos modernos interiores onde vivemos. Entre mim e o objeto de meu desejo uma infinidade de obstáculos e complicações, de objetos presos à parede como uma cortina em cadeia de pequenos elos. Por trás deles, examinando as paredes, eu as encontrei surpreso, já cobertas de papel, e o papel de parede coberto por sua vez com figuras sem o menor interesse, uma ridiculamente igual à outra. Não consegui entender como aquelas figuras, arbitrarias e completamente destituídas de qualquer significado religioso ou filosófico, 343 se espalharam por toda a minha parede como uma espécie de varíola. Acho que a Bíblia deve se referir ao papel de parede quando diz: “Não use vãs repetições, como faz o gentio.” Achei o tapete turco uma massa de cores tão sem sentido quanto o Império Otomano ou uma Delicia Turca. não sei exatamente o que seja a Delicia Turca, mas creio que devem ser os massacres da Macedônia. Por toda parte onde procurei, com o lápis ou o pincel, descobri que alguém antes de mim havia estragado as cortinas, os moveis e as paredes com bárbaros e infantis desenhos.

 

Em parte alguma encontrei um espaço em branco onde desenvolver os meus esboços até o dia em que prolonguei, para além de todos os limites, o prazer de ficar deitado na cama. Então a luz do branco céu atingiu meus olhos, num hálito de claridade como a própria definição do Paraíso na sua pureza e liberdade. Mas como o Paraíso, tão logo o vislumbrei, logo o descobri inatingível; mais austero e distante que o céu azul lá fora da janela. Quanto a minha ideia de pintá-lo usando uma vassoura: fui de pronto desencorajado por uma pessoa que, embora destituída de qualquer investidura política, não concedeu nem mesmo a minha proposta, mais modesta, de queimar o cabo da vassoura no fogão e usá-lo como carvão. No entanto estou seguro de que foi alguém na minha posição quem teve a inspiração original de cobrir os tetos de palácios e catedrais com uma profusão de anjos caídos e deuses vitoriosos. Tenho certeza de que foi graças ao antigo e honrado habito de ficar deitado na cama que Michelangelo imaginou como o teto da Capela Sistina poderia se transformar numa incrível imitação do drama divino que só no alto pode ser encenado. 

 

O tom que se usa hoje em dia em relação ao hábito de ficar na cama é insalubre e hipócrita. Entre todos os traços da modernidade com a marca da decadência não existe nenhum tão ameaçador e perigoso quanto a exaltação do mesquinho e secundário em detrimento do importante e primordial, dos trágicos e eternos princípios da moral humana. Se existe algo pior que o moderno enfraquecimento da verdadeira moral, será sem duvida o moderno fortalecimento de uma moral menor. Assim é mais ofensivo acusar alguém de ter mau gosto que acusá-lo de não ser ético. O asseio não vem mais depois da bondade, porque hoje em dia o asseio é essencial e a bondade ofensiva. Um autor teatral pode atacar a instituição do casamento desde que seus personagens tenham boas maneiras, e tenho conhecido pessimistas Ibsenianos que consideram deselegante tomar cerveja e correto tomar ácido prússico. A regra é válida especialmente no que toca aos assuntos de higiene e em particular a ficar na cama. Ao invés de ser visto, como devia ser, como questão de preferência ou conveniência pessoal, levantar-se cedo é considerado por todos como essencial a um caráter moral.

 

E, no fundo, o resultado da popular visão pragmática das coisas, mas na verdade não há nada que se possa dizer objetivamente nem a favor de levantar cedo nem contra o oposto disso. Usurários se levantam cedo; e arrombadores, segundo me informaram se levantam de véspera. O grande perigo de nossa sociedade é que seus mecanismos ficam cada vez mais rígidos enquanto seu espírito é cada vez menos confiável. Os atos menores do homem devem ser livres, flexíveis e criativos: e a rigidez ser reservada para seus princípios e ideais. Mas conosco é o inverso; nós mudamos nossos pontos de vista constantemente, mas almoçamos sempre a mesma hora. Eu gostava de ver homens com convicções fortes e enraizadas, mas no que se refere a seus almoços, para mim, podem ser feitos no jardim ou na cama, no telhado ou no galho de uma arvore. Que eles discutam sempre os mesmos princípios, mas discutam onde quiserem, na cama, num barco ou num balão. Este crescimento alarmante de bons hábitos significa na verdade que uma ênfase muito grande está sendo dada aquelas virtudes que os costumes por si só são capazes de manter e que muito pouca ênfase se as aquelas virtudes que o mero costume jamais será capaz de manter. Súbitas e esplêndidas virtudes de inspirada piedade ou inspirado candor. Quando precisarmos delas elas não estarão lá. Um homem pode se habituar a levantar às cinco da manhã, mas ninguém se acostuma a ser queimado por suas idéias; a primeira experiência na maioria dos casos é fatal. Devemos dar um pouco mais de atenção à possibilidade do inesperado e ao heroico. 

 

Ouso dizer que quando me levantar desta cama me espera um gesto de terrível virtude. Para aqueles que estudam a grande arte de viver na cama, devo de forma enfática incluir uma palavra de cautela. Que serve também aqueles que podem trabalhar na cama (como os jornalistas) e até aqueles que não podem trabalhar na cama (como os arpoadores de baleias), e claro que a indulgência deve ser ocasional. Mas não é este o aviso de cuidado que quero dar. A palavra de cautela é esta: se você ficar na cama até tarde, faca isso sem nenhuma justificativa. não estou falando, e claro, para os enfermos. Mas se um homem saudável resolve ficar deitado, deve fazê-lo sem nenhuma desculpa; assim e só assim ele se levantara saudável. Se fizer isso com o álibi de alguma razão higiênica ou com alguma explicação cientifica, corre o risco de se levantar hipocondríaco.

 Fonte: Chesterton Brasil

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